Inegavelmente a guarda do prontuário médico é um dos temas mais complexos quando analisamos a relação médico paciente, dentro da especialidade de Direito Médico e da Saúde.
Então, não raro a abordagem dessa relação ocorre em diversas situações do dia a dia.
Só para ilustrar, surgem muitas dúvidas sobre os limites da responsabilidade do médico – ou mesmo de entidade hospitalarou equivalente – com relação à guarda do prontuário médico do paciente.
Vários textos legais de fato regulamentam questões envolvendo o prontuário médico.
O tema é abordado pelo Código Civil brasileiro, pelo Código Penal brasileiro, Código de Ética Médica – CEM, Leis Ordinárias e Resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM.
Natureza jurídica do prontuário médico
Assim sendo, o assunto é complexo.
Por certo, o tema é norteado por dois fundamentos:
a) o prontuário médico é documento personalístico que pertence ao paciente. Sendo assim os documentos relativos aos registros da saúde do paciente devem ficar sob a guarda do médico e/ou serviços de saúde ou equivalente. Daí decorre que o médico e/ou serviço de saúde têm o dever e a obrigação de serem “guardiões” do prontuário;
b) sem dúvidas, nesta condição de “guardiões” o médico ou serviço de saúde também têm o dever ético jurídico de manter esses documentos sob absoluto sigilo.
Só para exemplificar, o conceito de “guardião” aqui referido, se equipara ao de “Anjo da Guarda”, que zela, rege, guarda e governa.
Exceções à regra – A guarda de prontuário médico
Por certo a regra da confidencialidade do prontuário médico não é absoluta e eventualmente, sob condições excepcionalíssimas, deve ser flexibilizada.
A princípio de forma absolutamente limitada, só pode haver a quebra do sigilo incidente sobre o prontuário médico, nos casos previstos em lei.
Assim, a regra do sigilo deve ser flexibilizada em casos de doenças de notificação compulsória, desde que haja previsão legal para isso, respeitadas os protocolos legais.
De acordo com a legislação vigente, geralmente as doenças infecto contagiosas com potencial de gravidade capazes de promover contágios são as identificadas como de notificação compulsória.
Quem pode ter acesso ao prontuário médico?
Com o intuito de preservar o sigilo do prontuário médico – se você for médico ou responsável por serviços de saúde ou equivalente que manuseie o prontuário – nunca deixe quem não esteja ligado diretamente ao tratamento do paciente acessar estes documentos.
Dessa forma, nunca disponibilize à terceiros sob nenhuma forma ou fundamento em observância à proteção que regula a guarda do prontuário médico.
Ou seja, é dever do médico e/ou do serviço de saúde ou equivalente, preservar a intimidade do paciente transcrita no prontuário.
Com toda certeza essa regra vale para prontuários físicos e prontuários médicos eletrônicos.
De tal sorte que – sendo médico ou responsavél por serviço de saúde – somente disponibilize o prontuário médico à terceiros diante de autorização.
Essa autorização deve ser expressa, ou seja, formalizada por escrito pelo paciente ou responsável legalmente reconhecido como tal.
Dessa maneira, o médico e/ou serviço de saúde – mesmo diante de determinação judicial – podem se negar a entregar ou revelar o conteúdo do prontuário médico de pacientes.
Isso ocorre quando, por exemplo, essa entrega expor segredo profissional que guarde ligação com a intimidade e/ou fatos que o paciente não deseje revelar.
Dessa forma, a negativa não deve ser tida como um descumprimento, mas sim como a obediência a um comando ético jurídico cogente de ordem pública conforme veremos adiante.
Prontuário como prova em processo judicial ou ético disciplinar
Em princípio uma corrente doutrinária entende que a ordem judicial obriga o médico ou serviço de saúde à quebra do sigilo contido no prontuário médico.
Como resultado, muitas vezes o prontuário é entregue, o que a nosso ver pode ser totalmente ilegal.
É que a relação médico paciente é regulada – como referido – pelo sigilo.
Então estamos diante do confronto de dois princípios normativos.
O dever do médico e/ou do serviço de saúde de manterem-se “guardiões” do prontuário e o sigilo sobre o que sabem de um lado.
E de outro lado, o interesse do Estado em apurar e conhecer, processar e julgar fatos que possam envolver o paciente numa investigação, processo ético profissional ou judicial (civel e/ou penal).
Então, como se resolve isso?
Inegavelmente a solução está na hermenêutica do sistema jurídico brasileiro.
Só o dono do prontuário pode quebrar seu sigilo?
Desde que o médico ou serviço de saúde não são donos do prontuário médico, mas somente detém a guarda dele, não há como se fazer a disponibilização desta documentação.
Essa regra vale mesmo diante de ordem judicial quando esse assunto envolver a intimidade e/ou segredo que o paciente queira preservar.
Com efeito, o contrário é admitir que o investigado faça prova contra si mesmo – em flagrante quebra de um princípio processual constitucional.
Em segundo lugar, o comando dos artigos 388 do Código de Processo Civil e 154 do Código Penal obrigam os médicos a observarem com rigor o sigilo das suas atividades.
Isso também se extende aos serviços de saúde.
Ações em Segredo de Justiça
Aqui, contudo, cabe um parêntese muito importante. É o caso de ações judiciais que tramitem em segredo de justiça.
De tal sorte que – nestes processos – a rigor, a incolumidade das informações da vida e da saúde do paciente, sob o ponto de vista da privacidade, seguem circunspectos ao sigilo.
Dessa forma, muitas vezes o próprio médico e/ou serviço de saúde quando se vêem envolvidos em acusações de má prática médica por exemplo, se põe obrigados a expor o prontuário do paciente.
Dessa maneira, somente poderão fazê-lo se requererem e obtiverem o sigilo processual respectivo via de uma decisão judicial.
Certamente alguns vão argumentar que o artigo 89 do Código de Ética Médica – Resolução CFM 2.217/2018 sugere que os médicos atendam comando judicial de entrega de prontuário quando ordenado por decisão judicial.
Contudo esse dispositivo fere a hierarquia das leis, posto que – como dito – os Códigos de Processo Civil e Penal, bem como inciso específico do art. 5º da Constituição Federal regulam de modo diverso essa controversa matéria.
Portanto, a nosso ver, não há forma de se admitir que um comando hierarquicamente inferior (uma Resolução autarquica) que não tenha enfrentado o processo de formação legislativa, altere o sentido e a direção do sistema normativo pátrio.
Outras questões sobre a guarda de prontuário médico
Por mais que se observe essa questão, ela engendra discussões e interpretações divergentes.
E sem dúvidas, cada caso deve ser analisado à luz dos fatos, dentro dos conceitos hermenêuticos de norma, fato e valor.
A regra do sigilo sobre a guarda de prontuário médico também deve ser relativizada em algumas situações.
Nos casos, como por exemplo: pessoas com incapacidades temporárias e/ou permanentes, pessoas em estado comatoso, menores impúberes, casos de urgência ou emergência.
Sob o mesmo ponto de vista, muitas vezes, os médicos do trabalho também se veem compelidos a depor sobre o estado de saúde dos seus pacientes em ações trabalhistas ou mesmo previdenciárias.
Novamente por certo, o Código de Processo Civil, o Código Penal e o CFM – Autarquia Federal que tem o poder/dever de regular e regulamentar o exercício da profissão de médico e da medicina, podem ter a resposta para os impasses.
Prontuário médico de paciente falecido
Assim também, outra dúvida muito frequente é sobre o dever de sigilo sobre prontuário médico de paciente falecido.
De acordo com as circunstâncias, esse prontuário será necessário para esclarecer dúvidas cruéis, como por exemplo: a causa mortis.
Ou ainda, uma investigação de paternidade, investigações criminais, identificação do próprio corpo etc.
Certamente essas situações não são raras. Todavia, a nosso ver, a confidencialidade segue sendo regra, pois a personalidade do paciente acompanha a sua memória mesmo depois do seu passamento físico.
Contudo, de acordo com as circunstâncias de cada caso, neste cenário, pode ou deve haver uma flexibilização do sigilo – ou a sua modulação frente a cada circunstância.
Ademais, a entrega de prontuário médico de paciente falecido – segundo recomendação do CFM – deve observar a regra de hereditariedade normatizada pelo Código Civil no Capítulo das Sucessões.
Prontuário de paciente quando o médico morre?
De maneira idêntica muito se questiona sobre o destino dos prontuários médicos dos pacientes quando o médico falecer.
Com efeito, não existe a rigor nenhuma regra muito clara sobre os procedimentos a serem adotados acerca desse assunto.
Desse modo, o que se aplica é uma orientação exarada pelo Conselho Federal de Medicina.
O CFM sugere – sem obrigar – que familiares do médico falecido, disponibilizem o prontuário aos pacientes interessados
Isso deve se dar mediante a publicação de avisos publicados em mídias de grande alcance para esse fim.
Com toda a certeza os familiares não podem ser obrigados ao cumprimento destes procedimentos.
Em outras palavras, a matéria exige uma orientação legal mais precisa e menos nebulosa. E essa competência, a nosso ver, é das casas legislativas que integram o Congresso Nacional mediante uma legislação específica.
É provável que a controvérsia seja menor quando o médico finado atuava em conjunto com outros colegas.
Ou estivesse vinculado a uma estrutura de saúde como uma clínica, ambulatório, hospital ou equivalente.
Estas situações – deve observar as condições de cada cenário.
Sempre sem esquecer que a entrega do prontuário deve ser feita a quem de direito, sempre mediante protocolo.
Exceções possíveis
A doutrina que sedimenta os entendimentos e as jurisprudências dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina.
E, sobretudo, do Superior Tribunal de Justiça – STJ, que regula a matéria de forma pacíficas no sentido e direção de dar proteção à confidencialidade da relação médico paciente, como regra geral.
De acordo com esses comandos legais, se você for respopnsável pelo prontuário médico, somente quebre ou flexibilize a confidencialidade em situações absolutamente pontuadas:
a) Quando o paciente ou familiar devidamente legitimado autorizar por escrito;
b) Nos casos das notificações compulsórias expressas nos textos legais, observando os protocolos respectivos;
c) Quando houver ordem judicial fundamentada neste sentido que não afronte o dever de sigilo médico.
No caso da letra “c” do item acima, essa flexibilização é relativa, posto que mesmo sob comando judicial, o médico – assim como o padre, o psicólogo, o advogado e outros profissionais – podem invocar o dever do segredo profissional.
Dessa forma, uma ordem judicial também não pode obrigar o médico ou serviço de saúde a cometerem um ilícito de ordem ética, civil e penal, expondo os mesmos ao risco de responderem de forma ampla perante o seu Conselho profissional.
Ou mesmo diante de paciente ou familiar – por eventuais danos morais ou mesmo ações judiciais.
E não esqueça que revelar segredo profissional pode ser considerado crime.
Conclusão
Em conclusão, o prontuário médico é documento confidencial.
Nesta condição, a confidencialidade além de ser direito do paciente é dever inflexível do atuar médico e do serviço de saúde ou equivalente.
Essa interpretação se dá segundo preceitos advindos de comandos legais específicos e da jurisprudência dominante e consolidada nos Tribunais brasileiros.
Ou seja: pelo Código de Ética Médica, por várias Resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, pelo Código de Processo Civil brasileiro e pelo Código Penal brasileiros.
Da mesma forma o assunto também se insere na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD.
Esse texto legal trata a questão do sigilo do prontuário como inserido no conceito de “dados sensíveis”.
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*Artigo atualizado com base na Lei Geral de Proteção de Dados.
Luiz Carlos Nemetz
Advogado – OAB/SC 4.595.
Membro do Conselho Gestor da Nemetz, Kuhnen, Dalmarco & Pamplona Novaes Advocacia